04 março 2020

SOBREVIVENTES



            O ano é 2050. Depois de décadas da epidemia que levou à morte milhares de infectados, no navio que permaneceu ancorado, à época, em observação, e depois, desinfetado e liberado para o uso, um cozinheiro entra em contato com uma substância esponjosa e úmida, ao limpar os cantos de um dos armários de utensílios.
            Alguns dias depois, o homem, que era conhecido por ser rude, grosseiro e radical, destilando seu ódio por toda a tripulação, começou a tratar todos com educação e simpatia.
            A princípio, todos estranharam, visto que os piores sentimentos haviam se tornado regra na sociedade, e alguns, que eram seus fãs e até o imitavam, tomando-o como exemplo de austeridade e disciplina, condenavam-no, por ter apresentado tal mudança. E quanto mais os dias se passavam, mais ele modificava sua postura e atitudes, tratando bem até as mulheres da equipe, o que não lhe era peculiar. Assim, sua gentileza começou a se espalhar pelo navio, pelo porto, pela cidade, pelo país, e ganhou o mundo! Nos lares, ruas, enfim, por todos os ambientes, a felicidade podia ser vista no semblante da população.
            Até que o grupo que se decepcionou com a mudança daquele homem e não aprovava um mundo tão fraterno, organizou-se e chegou ao poder. Assim que tiveram a chance, dominaram a Ciência e seus laboratórios, na pesquisa de uma vacina contra esse “novo vírus”. Pessoas que, há trinta anos, não tomavam vacinas foram as primeiras a procurar os postos de vacinação. Mas, a maioria entendia que, pela primeira vez, em muitos anos, seus anseios de uma sociedade mais justa e amável estavam se realizando e, em massa, boicotaram a vacina, mesmo sendo, em alguns lugares, imposta à população sob a mira de armas.
            Trinta anos podem ter sido muito para alguns, mas a mudança aconteceu. Aqueles que se negaram a tomar a vacina conseguiram perpetuar, na espécie humana, valores que pareciam escondidos ou que as pessoas tinham vergonha de deixar transparecer, porque o vírus do ódio havia se disseminado até então.
            A substância esponjosa e úmida com a qual o cozinheiro teve contato era o botão de uma flor extinta, assim como outros vegetais e animais, e o “novo vírus” era o amor, sobrevivente, em nós.

Cláudia Ferreira
04 de março de 2020


4 comentários:

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